Cenas de Vida 9- O intrometido
A manhã corria célere, no encalço de pessoas apressadas para apanharem o transporte, que os conduza a mais um dia de trabalho rotineiro.
Enquanto tomava uma bica, encavalitado num balcão de vozes imprecisas acotovelando-se para chegar primeiro ao ouvido de um empregado atordoado, acabara de deixar escapar por entre os dedos mais um dos seus pedaços.
Ao pôr o pé na rua, ansioso por entrar na minha cela laboral, para dar continuidade à missão que me confiaram de contribuir para o aumento do PIB, quase sou atropelado por uma mulher magra, em passo estugado, cujo cabelo cobreado esvoaçando ao ritmo da leve brisa que soprava, me fez lembrar uma chama que pretende libertar-se do fósforo que a mantém refém.
Ainda na soleira da porta, vejo folhas de papel arrumadas em forma de revista, desprender-se do seu corpo.
Vá-se lá saber porquê, um jovem que passava, numa de cavalheiro, apanhou a revista do chão e, pressuroso, foi entregá-la à sua – ainda que provisória- proprietária, pensando certamente que estava a fazer uma boa acção.
“ Desculpe, a senhora deixou cair isto”- ouvi-o dizer- enquanto se aprestava para devolver o tesouro de letras encapadas, quiçá em troca de um sorriso esforçado de agradecimento.
A reacção da mulher ter-lhe-á gorado as expectativas...
“Eu? Não deixei, não. Não quero é isso para nada.”
“Ah bom! Então podia-o ter deitado num caixote do lixo ou deixado na tabacaria onde a comprou, porque isto é um suplemento do jornal que leva aí...”
“Mas quem é você para me estar a dar lições? A Câmara tem gente para fazer a limpeza, que eu saiba! Mas se está tão preocupado vá lá você por isso no lixo, que foi você quem apanhou isso do chão. Eu não quero isso para nada, já lhe disse...”
Apressada, lá continuou o seu caminho, vociferando entre dentes, mas de forma audível “estes gajos são uns metediços! Os pretextos que arranjam para meter conversa!... Os paizinhos não têm tempo para os educar e a gente que os ature. P´ra onde é que isto vai, meu Deus?”
Entrevi o jovem a ruborescer, e ouvi-o atirar um pedido de desculpas por ser civilizado. Voltou para trás e colocou diligentemente o destacável no recipiente apropriado.BINGO!