Um país de corpo inteiro
Arnaldo Gonçalves
A lógica das comemorações dificilmente resiste à recorrência das boas intenções, à abundância dos propósitos louváveis e ao choro dos falhanços. Serve, sobretudo, para cumprir calendário, para assinalar a ligação à Pátria e para reanimar uma certa mística sobre os aspectos mais eloquentes do país.
Tentar fazer mais do que isso é cair numa exaltação patrioteira fascistoide que escamoteia aspectos da presença de Portugal no mundo que nos devem preocupar como a falta de dinamismo das comunidades emigrantes, a pobreza do fenómeno associativo, ou o falhanço da educação linguística das terceiras gerações de emigrantes.
Portugal tornou-se, nas últimas décadas, um país mais franqueado para o exterior tanto nas comunidades estrangeiras que ali procuram abrigo e a oportunidade de começar uma vida nova, como na saída daqueles que não encontrando dentro oportunidades para singrarem, se fazem ao caminho e se expatriam pelo mundo.
Tal facto normalmente identificado em estudos de sociologia como sintoma da má governabilidade do país, ou da falta de um “destino nacional”, deve ser, ao invés, elogiado e valorizado. Faz parte da condição de homem pós-moderno, para lembrar um conceito caro ao alemão Jürgen Habermas, a dimensão cosmopolita do indivíduo moderno na forma como desenha o seu projecto de vida, e assume a mobilidade como forma de estar num mundo global.
Não sei se os dados disponibilizados pelos Serviços de Estatística e Censos de Portugal são fiáveis e significativos, mas verifica-se um recrudescimento do fenómeno da emigração portuguesa, que foge, no entanto, ao romanceamento neorealista da fuga para França, por montes e vales e ao trabalho ilegal em condições de quase semi-escravatura nos “arrondissements” de Paris. O emigrante português actual é jovem, urbano e letrado, procura oportunidades de emprego fora do país respondendo a anúncios de recrutamento em jornais e revistas estrangeiras, e acomoda-se nas comunidades de destino em condições idênticas ao expatriado francês, italiano ou australiano. Procura poupar para transferir os seus rendimentos para Portugal, mas procura conforto, lazer e sentir-se bem no país que o acolhe. Não quer dizer que não existam casos do outro tipo, mas são situações excepcionais que se soletram com anormalidade, crime, tráfico de pessoas.
Mais do que os representantes diplomáticos tradicionais, estes portugueses expatriados são agora a imagem de um Portugal do século XXI, ao revelarem a capacidade de engenho, de improviso, de organização que nos celebrizou noutras eras e cujo sentido vivificador importa nutrir e acarinhar.
Lembrou bem o Presidente da República, Cavaco Silva, nas comemorações do 10 de Junho, que o mote que identifica o sentir nacional não pode continuar a ser o conformismo, o abatimento, a passividade perante os indicadores de atraso face aos países europeus, ou a queda dos indicadores sobre o aproveitamento escolar, a literacia, ou a erudição.
Tem que ser a capacidade de assumir riscos, de criar projectos empresariais, de lutar por objectivos e metas concretas. Se não existem [lá] dentro há que procurá-los [cá] fora. Por isso a acção política de apoio e estímulo às comunidades expatriadas é fundamental na política externa do país e faria melhor o actual ministro dos negócios estrangeiros em olhá-la com sentido de prioridade e profissionalismo. Em vez do mote do bailinho da Madeira e da música pimba com que insiste em interagir com as comunidades expatriadas.
Um apontamento local. Macau insere-se neste esteio da portugalidade que cruza o mundo e através do qual se projecta a nossa maneira de viver e os nossos interesses, como país. Mas diversamente dos saudosistas do passado colonial já não faz já sentido olhar para o “ser-se português” com timidez, nostalgia ou angústia da perda.
Os mil e quinhentos expatriados que vivem no continente chinês estão aqui para realizar projectos de vida de uma forma não muito diferente dos seus concidadãos da Venezuela, da África do Sul, dos Estados Unidos, da França ou da Alemanha. Querem realizar-se profissionalmente no sector público ou no sector privado, mas ao mesmo tempo sentirem-se úteis às comunidades com que privam. Os seus interesses são próprios e diferentes de outras comunidades, designadamente os luso-chineses, mas não são necessariamente incompatíveis.
É, contudo, irresponsável persistir a entregar aos outros, a representação dos interesses que lhe cabe defender. Recriminando-se, sistematicamente, de se sentirem socialmente mal representados. De que estão à espera?