As temperaturas dos últimos dias, anunciando o Verão, permitiram-me retomar o hábito de sair de casa pela manhã e caminhar até ao meu local de trabalho. É uma prática que me revigora o físico e me apura os sentidos. Só pela manhã – e nesta época do ano- é possível sentir os cheiros de Lisboa, pois a poluição já há muito nos retirou esse prazer quotidiano.
Estou longe de ser um admirador incondicional de Lisboa, ou de a considerar a mais bela cidade portuguesa, mas gosto de calcorrear as suas ruas, rindo-me interiormente dos papalvos que perdem horas diárias em longas filas de trânsito, porque só caminhando consigo aperceber-me do pulsar da cidade e da forma como vai mudando a sua face.
Foi isso que sucedeu ontem. Como acontece sempre que faço o percurso a pé até ao Saldanha, aproveito para tomar um café pelo caminho. Embora não tendo local certo para o fazer, sou muitas vezes “atraído” para um pequeno café no Campo Grande cuja existência recordo desde os tempos em que frequentava a Faculdade de Direito.
Logo pela manhã, quando saía do Pio XII, o Café do sr Augusto ( se não me falha a memória era esse o nome do proprietário da altura) era a paragem acolhedora onde me abrigava de um aguaceiro inesperado, ou onde tomava a primeira bica, lado a lado com trabalhadores da construção civil e camionistas, que bebericavam a sua aguardente ou o seu “copo de três”.
Há hábitos que julgamos esquecidos mas nos ficam no subconsciente e, logo que uma oportunidade surge ( mesmo passados muitos anos) faz-se um “clique” e retomamo-los sem percebermos muito bem porquê. Creio que é isso que explica o facto de a maioria das vezes que percorro a distância entre a minha casa e o Saldanha, sentir um “impulso” que me leva a entrar quando passo à porta deste Café - que mantém as características quase originais, apesar de não ter escapado à instalação de um balcão refrigerador onde doces e salgados mantêm promíscuo convívio.
Ontem, porém, consegui passar incólume à sua porta e acabei por tomar a bica matinal num “alindado” espaço da Av da República, onde o balcão da promiscuidade alimentar apresentava belíssimos espécimes de doçaria conventual. As paredes pintadas de cores alegres e o mobiliário, funcional, anunciavam abertura recente. Entrei sem hesitar. A empregada (única) era brasileira. Entre a clientela ( ainda escassa) eu era o único português. Havia ainda duas jovens de Leste com olhares distantes, dois casais de turistas de origem não determinada com ar sonulento, duas negras de meia idade em animado cochicho e um jovem asiático falando furiosamente ao telemóvel.
Enquanto saboreava, com um misto de gula e culpa, o meu doce pecado matinal, parou à porta uma carrinha de onde saiu um preto carregado de caixas que entregou nas mãos da empregada brasileira.
Quando retomei o meu caminho, comparei o cenário com o de Portugal dos anos 60. O contraste com o país de “branCos costumes” da época, isolado do mundo, onde um preto que circulasse nas ruas, era visto por muitos como um potencial terrorista, e um turista olhado com veneranda admiração, fez perpassar por mim um arrepio.
Lisboa, como o país, felizmente mudou muito. Ontem, o quadro multicultural de que fui personagem, fez-me lembrar a Londres do final da década de 60. Curiosamente, senti-me cidadão do Mundo... mas logo os “Pintos Coelho” deste país que conspurcam a paisagem com cartazes xenófobos me fizeram voltar à realidade. Só pensar que vivo numa cidade onde a autarquia tolera esses cartazes, mas se apressa a mandar retirar outro que o ridiculariza, multando os “infractores”, faz-me logo voltar ao país dos “branCos costumes”. Uma sensação de vómito ameaça devolver às origens o doce conventual .