Lido noutro lado II
[...] A nossa sociedade está cheia de ruídos tagarelas e de pesados silêncios. Este povo tem opinião sobre tudo mas sabe cada vez menos. Entope os programas da rádio ou televisão que a custo zero preenchem horas a fio com a participação espontânea de ouvintes e telespectadores, mobiliza-se para votar democraticamente qual o maior português de sempre, comove-se com os amores de Salazar, com o exílio de Marcelo, com as vítimas da PIDE ou com a coragem de Aristides Sousa Mendes, mas não responde a um inquérito básico sobre quem foi cada um destes e de outros nomes de portugueses que numa gigantesca operação de marketing disputam os outdoors das nossas cidades com os cartazes do referendo do aborto. Tudo se equivale e iguala, porque tudo acontece nessa mágica fábrica de faz de conta que é a televisão. Aliás parece que só a televisão entusiasma este povo: ainda muito recentemente se apaixonou pelo caso do Sargento Luís – houve em tempos um outro, lembram-se? também era Luís, mas era soldado, e era do PREC – e num ápice reuniu 10.000 assinaturas para o Habeas Corpus, Como há anos se alistou nesse exército anónimo que ocupou ruas e praças por Timor repetindo em uníssono «Somos todos timorenses». Causas que até foram comparadas justamente por esse medidor (mediador) de senso comum que é a comunicação social. Como somos mestres em voos acrobáticos, e muito dados a liberdades poéticas, sem custo vamos do caso do Sargento a Timor e de Timor ao 25 de Abril.
O salto no absurdo justifica-se porque tudo se resolve num faz de conta. É ainda Eduardo Lourenço que diz que até nos grandes momentos da história sempre estivemos ausentes de nós mesmos. Por isso nem a euforia nem a tragédia deixam marcas ou inscrições, para citar José Gil. Porque «vivemo-las, mas não as somos». Nenhuma delas fura a espuma dos dias, nem custa uma insónia a este povo que, por se querer feliz, apaga (se possível pela televisão) a própria história[...]
Maria Manuela Cruzeiro no Passado/Presente