quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007

Alberto João Jardim: até já!

Alberto João Jardim anunciou a demissão do governo madeirense em protesto contra as medidas do executivo socialista da República e confirma a sua recandidatura em eleições antecipadas lê-se algures na imprensa. Segundo declarou em comunicado lido na sede do governo regional recandidata-se por achar que «a Madeira não merece passar a ter um governo de medíocres, de incultos, de traumatizados sociais e de subservientes a Lisboa».

Há algo de quixotesco e trágico nesta política teatral de Alberto João Jardim. No poder desde 1978, há três décadas, portanto, Jardim é bem o exemplo do que os pais fundadores da república americana consideravam o aspecto mais nefasto da política como a conheceram, o apego untuoso ao poder, a qualquer preço e com a denegação de qualquer lógica. Daí terem inserido na Constituição Federal de 1787 um dispositivo destinado a impedir a reeleição por mais de uma vez do titular do poder executivo e outro a realizar eleições parciais para o poder legislativo a meio do mandato do presidente. Lord Acton disse-o de uma forma categórica: quem está no poder tenta-se a abusar dele mas quem exerce um poder quase-absoluto abusa dele absolutamente.

O regime autonómico regional que foi consagrado na sequência da aprovação da Constituição de 1976 pela mão dos nossos "pais fundadores" Jorge Miranda, Magalhães Mota, Sá Carneiro, Mário Soares e outros é a expressão da contradição entre propósitos louváveis e irrealismo político. Por uma daquelas verdades a priori que a política à portuguesa é fertil consagrou-se um casaco regional para país rico no corpete de um país pobre [ou pelo menos remediado]. E como na sua constante elaboração faltou tecido [leia-se meios financeiros] começou a cortar-se no tamanho mantendo a oboesidade do corpo. Em vez de impôr uma dieta higiénica disse-se ao paciente que se pode continuar a alambazar mas com menos conduto. E o paciente revoltou-se, porque não admite a ração diminuida.

Alberto João Jardim é o último sobrevivente do caciquismo democrático, bem enraizado no nosso sistema político e que deu consistência à prevalência dos dois principais partidos do arco constitucional, PS e PSD. E como cacique é um homem de enorme influência. O seu basismo a roçar [por vezes] a bucilidade é, ao contrário do que muitas vezes vejo defendido por alguns dos nossos intellectuels, expressão de um certo estilo de fazer política que tem raízes marcantes na nossa história próxima e que tem manifesto sucesso. Mas Jardim não é um caso único e se atendermos à forma como se faz política na região autónoma é um caso repetido nos restantes partidos do arco político regional. Mas por muito que nos desgostemos com as más consequências da democracia vê consagrada a sua legitimidade política em cada eleição regional. Ao se demitir e propor de novo a referendo popular Jardim criará um daqueles absurdos que o nosso sistema constitucional pacientemente favoreceu: ser eleito com base num programa desenvolvimentista [e despesista] contrário à orientação do governo central e aos condicionalismos da gestão económica impostos por Bruxelas e governar ao seu arrepio.

Coexistirão assim depois destas eleições regionais [e não vejo como o Presidente da República se lhe pode opor-se] duas legitimidades rumando em sentidos opostos: a do governo central eleito pelo conjunto dos eleitores portugueses, a do governo regional eleito pelo conjunto particular dos eleitores madeirenses. Mas essa coexistência tem uma característica muito especial: a maior parte dos meios financeiros destinados a sustentar o funcionamento [e as políticas] do governo regional advêm do orçamento geral do Estado e não do orçamento regional que é deficitário. E os representantes eleitos pelo conjunto dos portugueses têm manifesta autoridade para no local próprio - a Assembleia da República - ditarem as regras e a forma pela qual o dinheiro público é administrado - mesmo que seja contra as expectativas e a opinião dos eleitores madeirenses.

Estamos numa situação similar há que ocorreu há 230 anos do outro lado do Atlântico. Também aí os colonos ingleses se insurgiram quanto à iniciativa de Westminster lhe impor impostos sem a sua autorização. O famoso "no taxes without representation". E esse acto considerado lesivo dos seus interesses e da tradição lockeana da British Constitution conduziu-os ao caminho da independência. Não estamos aqui na presença de impostos mas há claramente uma redução das expectativas na transferência de fundos para as regiões autónomas. Os madeirenses [ao contrário dos americanos] estão representados no parlamento nacional e puderam expressar a sua posição quanto ao assunto. Mas a lógica soberana do voto por maioria ditou o prejuízo dos seus interesses sobre os interesses gerais.

Há 230 anos os colonos americanos consideraram a sua relação com a metrópole rompida pela acção do Parlamento britânico e do rei Jorge III. A Declaração de Independência é a expressão notável das sua grievances e da inevitabilidade do corte dos laços com a mãe-pátria. Mas no caso americano a sua situação era desafogada e auto-sustentável. No caso madeirense ela é de dependência crónica do fluxo de dinheiros da República e do apoio de Lisboa no Comité das Regiões da União Europeia. Jardim pode fazer, portanto, o seu show-off mas Sócrates e Cavaco sabem que ele nunca esticará de mais a corda. Por uma razão simples: ela permite que ele se mantenha acima do nível das águas. Sem ela mergulhará no oceano.