segunda-feira, 13 de agosto de 2007

Porque Zita não é Mónica

Lido noutro lado
[...] Além do mais, ser comunista requeria coragem. Por isso é que, nesses tempos, Freitas e Júdice não eram sequer socialistas. É dessa coragem que Zita Seabra nos dá conta. Esse é um dos pontos de interesse do seu livro. A história de uma adolescente da alta burguesia que adere ao Partido e vive uma clandestinidade perigosa e é uma história de idealismo e coragem. Zita foi corajosa. Ninguém pode apagar esse facto. Neste particular, e como documento histórico, as memórias de Zita Seabra podem ser comparadas com as de Maria Filomena Mónica, curiosamente publicadas pela mesma editora e que é dirigida por Zita. Mónica era uma menina bem, casada com um Pinto Coelho, com conhecimentos na sociedade lisboeta, não renunciou a nada, viveu de cunhas e favores, foi bolseira da Gulbenkian, andava de Porsche nas vésperas da revolução, beneficiou de cunhas dos amigos, tinha amigos com diminutivos como Micuxa e apelidos Galvão Teles, fez carreira cómoda e confortável. Maria Filomena Mónica confessa que, no Verão de 1974, a sua preocupação era a redacção da sua tese, tendo obtido o estatuto de bolseira e sendo dispensada da docência! Nesses tempos, confessa, apesar da agitação que se vivia, a senhora estava preocupada com a sua tese! Não lhe retiro nenhum valor intelectual e académico, tem trabalhos que muito aprecio, mas há uma verdade iniludível que me escuso de anunciar porque assoma refulgentíssima quando se lêem os dois livros. Basta lê-los e contrastá-los.
Este é um dos pontos interessantíssimos das memórias de Zita. Zita abandonou os estudos e passou à clandestinidade, não andou pelo campus de Oxford, não recorreu a cunhas nem a compadrios, entrou na clandestinidade, abdicando dos confortos da vida burguesa e dos benefícios de um futuro burguês, largando mesmo as lições de ballet. Zita não é Mónica. Não digo que seja melhor nem pior, não aceito sequer que haja qualquer superioridade moral, noto é um contraste, noto um comprometimento não assumido por parte da elite burguesa com o antigo regime marcelista e isso ajuda a explicar o prolongar agónico do regime. Por outras palavras, a ascensão burguesa verificada a partir da década de 60, consentida pelos fantásticos níveis de crescimento económico, não era de molde a atrair este nível social para as dinâmicas de mudança. Tanto mais quanto o inconveniente se evitava com a cunha (como a guerra ou a prisão do filho na crise académica), o privilégio se adquiria com a cunha (como a bolsa, a viagem aos estrangeiro, o emprego num ministério) e tudo o mais vinha com o optimismo dos sixties e com os ritmos de crescimento.

Algumas notas pessoais a um caso recente da "política à portuguesa" que causou alguma divergência de pontos de vista na tripulação deste blog, plural e portanto enriquecedor. Considero o caso Zita Seabra exemplar para a percepção de um dos mitos romanescos da revolução portuguesa: a conversão dos comunistas ao ideal democrático e o seu comprometimento com a libertação das sequelas do regime autoritário finito em 25 de Abril de 1974. Duas coisas que são uma impossibilidade lógica, já que nem nunca os comunistas estiveram sintonizados com os ideais da democracia "burguesa", nem nunca quiseram expurgar o regime democrático das sequelas do regime autoritário. Bem pelo contrário como prova uma extensa historiografia contemporânea [António Barreto, António Costa Pinto, Kenneth Maxwell, José Magone, Victor Perez-Dias] quiseram tomar de assalto o aparelho corporativo do estado salazarista para se apropriarem da sua direcção como preparação de um golpe comunista. O combate do PS e a formação da UGT têm exactamente a ver com a necessidade de bloquear o avanço comunista para o aparelho de estado, tendo arregimentados, à sua volta pessoas, e forças políticas que nada tinham a ver com o PS, mas percebiam a natureza totalitária e golpista dos apaniguados de Cunhal.
Zita escreve e conta de dentro a acção dos comunistas partidários da União Soviética e cava fundo nalguns mitos associados ao ideário comunista como a luta pela liberdade e o estabelecimento de um governo representativo. E revela por dentro a natureza despersonalizante da educação comunista, a lógica de seita que prevalecia, premiando fiéis e denunciantes e exorcizando os que discordavam ou criticavam o Querido Lider.
Privei com alguns dos companheiros de route de Zita Seabra, antes e depois do 25 de Abril, na faculdade de direito de Lisboa [onde estudava quando o 25 de Abril estourou] e nunca me confundi quanto às suas convicções autoritárias, à falácia do socialismo real e à natureza torcionária da pátria do socialismo: a União Soviética. Usávamos, então, uma qualificação para os designarmos - social-fascistas - isto é, gente que apregoava o socialismo, a igualdade e a liberdade nas palavras mas que queria instituir [na prática] um regime ditatorial de aparente sentido contrário, sem liberdades fundamentais, com uma verdade única, um partido único, um estado monopolista e uma corte de apaniguados a quem eram dados privilégios indisponíveis para o comum dos mortais. A queda do Muro do Berlim veio mostrar que isso era não só realidade mas uma pequena parte da realidade. Jornais alemães davam nota - esta semana - de instruções do governo para os guardas fronteiriços da RDA de atirarem a matar a quem se atravesse a passar o muro para o lado ocidental.
O único equívoco que entronizei era que esta prática política era um "desvio" em relação aos ideais puros e nobres do marxismo-leninismo e que seria possível, partindo de uma crítica de esquerda, limpá-lo dessas deturpações e desvios. Tratava-se - vim a perceber mais tarde - de uma mistificação, uma vez que os estigmas que criticava - o autoritarismo, o golpismo, a despersonalização, o nepotismo, a intolerância - radicavam na verdadeira fonte da doutrina e não eram uma sua excrecência. Vi-o do ponto de vista do maoismo, então o irmão desavindo da família comunista, sem perceber na altura que os estigmas eram os mesmos e as ameaças a uma democratização efectiva da sociedade portuguesa da mesma natureza, embora pelo carácter microscópico dos grupos maoistas, insignificantes. Mas deu para perceber em fenómenos similares de despersonalização, de espírito de seita, da obsessão da superioridade do partido sobre a vida individual, da perseguição e humilhação dos que titubeavam perante o dogma - que se tratavam de fenómenos miméticos e muito perigosos.
Consta das minhas próximas leituras o livro Conquistadores de Alma de José Pinto de Sá, meu antigo companheiro na extrema-esquerda maoista, publicado pela Guerra e Paz. Recomendo-o vivamente aos leitores, porque dará uma outra face desta história. Uma história que se confunde hoje pela bruma do tempo, minimizando-se ameaças, esquecendo traições, e minimizando os perigos que a democracia portuguesa passou numa fase muito difícil do seu percurso. Valhou-nos o 25 de Novembro e a visão de homens sábios e prudentes.
Abandononei as fileiras comunistas em 1976, ao perceber que nada tinha a ver com aquilo. Nada me liga aos neo-conservadores mas acho importante e actuante uma posição de princípio de dismistificação do comunismo como ideologia e movimento político. Hannah Arendt mostrou em As Origens do Totalitarismo a natutreza dual do fenómeno e os gémeos políticos que foram Hitler e Estaline. Por isso é louvável - a benefício da memória colectiva - o exercício de Zita Seabra. Quanto aos que mudaram de partido talvez devessem interrogar o Dr. Mário Soares ou o Dr. Manuel Alegre sobre a respectiva "deserção" do partido comunista. Ajudava a dar alguma equidistância.