segunda-feira, 26 de março de 2007

Ainda os "Grandes Portugueses"

Parabéns ao Carlos Oliveira pelo fôlego que traz ao Além do Bojador. Fizemos muitas viagens juntos e embalámos alguns sonhos em conjunto [também]. Vejo-me mais à direita hoje aos 53 que ele, depois de ter calcorreado todas as utopias que era costumeiro fazer-se na nossa geração. Daí que até por deformação profissional me preocupe em [tentar] perceber as reacções impulsivas dos eleitores quando são colocados perante uma escolha.
1. A primeira leitura do resultado do recente concurso da RTP parece indicar que os portugueses [creio insignificante no cômputo geral o facto de ter havido pessoas que votaram mais do que uma vez] se reveram em personalidades que marcaram os últimos 70 anos do século XX português. Creio que na direita e na esquerda Salazar e Cunhal fizeram-no independentemente da qualificação que se faça de cada um deles.
2. A segunda leitura é que terão votado maioritariamente eleitores [e espectadores] acima dos 50 anos, o público tradicional da RTP, e que terão sido sensíveis aos traços mais visíveis do século que acabou [e que vivenciaram] mais que ao flash-back de uma memória histórica que se perdeu, há muito.
3. Porquê votar em duas personalidades marcadas por um perfil autoritário, tacanho, provinciano e de certa maneira miserabilista? Creio que se pode interpretar o sentido do voto como um apelo silencioso ao primado da segurança, da confiança, das ideias consistentes e seguras que fazem parte dos dogmas. De certa maneira, o nacionalismo clerical de Salazar e o marxismo estalinista de Cunhal têm esses pontos, em comum. A confiança [cega] numa verdade soprada [ou imposta] inabalável, que se impõe como uma revelação divina ou a afirmação da lógica inexorável do devir histórico. Sem discussão porque a fé não se discute.
4. Sem equívocos, Salazar e Cunhal são o cais de partida dessa confiança tranquila no ombro patriarcal de que os portugueses andam, há algum tempo, dolorosamente, carentes. Porque os pais ainda que autoritários e punidores dão ao cidadão infantilizado a tranquilidade e o conforto que não lhe exigir pensar, tomar decisões, fazer escolhas. Os portugueses estão fartos de ser chamados a fazer escolhas, a fazer o trabalho que importa aos políticos fazer...
5. Uma outra leitura incontornável é a censura à classe política em democracia e aos pais do Portugal Democrático. Entranha-se à muito na sociedade portuguesa a ideia que os políticos são uns palhaços, uns aldrabões, uns vigaristas. Dizem uma coisa, hoje e fazem outra, amanhã. Alguns são-no e a grande nebulosa de impunidade que tem prevalecido na justiça [e no sistema político] desde o 25 de Abril leva os portugueses a tomar esta conclusão, como verdade a priori.
6. Entre os pais da revolução portuguesa o resultado deste concurso deve ser visto em meu entender pelo que ele simboliza, como uma derrota pessoal de Mário Soares. Talvez mais ele que todos os outros corporize essa ideia do troca-tintas, do político que não olha a discursos, nem a tácticas para chegar a um fim premeditado normalmente motivado por despeitos pessoais. Talvez ele, mais que os outros, porque teve o país aos seus pés por duas vezes [como Presidente da República] tenha desperdiçado, de uma forma miserável, as oportunidades que o destino lhe pôs nas mãos, abrindo caminho para o malbaratamento guterrista de que hoje ainda pagamos a factura pesada. A decepção com a democracia tem em grande parte explicação nesse fartanço com Mário Soares que o resultado das últimas eleições presidenciais é exemplificativo.
7. Que fazer com este resultado? O primeiro erro que devemos evitar é desprezá-lo ou sobrevalorizá-lo. Qualquer dos dois é péssimo, o primeiro porque nos leva a enganar-nos a nós próprios com o que ele significa; o segundo porque nos leva, seguramente, ao desnorte e ao pessimismo crónico. Não há nada a fazer o povo é estúpido é o que se ouve já, sibilinamente, pelo lado da esquerda instruída. Não deveremos fazer esse erro de análise, porque afinal esse povo estúpido é o que elegeu Soares por duas vezes e pôs lá Sócrates. Mas o resultado mais que dezenas de sondagens de opinião de reduzido rigor e alcance revela que o país está a perder a paciência e algures, no futuro, pode virar a direcção.
8. Se percebo o sentido de voto o ambiente está maduro para o surgimento de soluções políticas milagreiras e populistas. Ao nível da irracionalidade em que vai o pendor do eleitorado o primeiro demagogo consistente que aparecer no firmamento lusitano irá ganhar a adesão maciça dos portugueses. Quando falo em portugueses [em termos de média prevalecente na amostra] refiro-me ao português urbano, pouco instruído, pequeno-burguês, reformado ou a caminho disso, conservador nos gostos e extremamente critico quanto à gestão do Estado e à classe política. Há paralelos na história mas sem querer levar o raciocínio longe de mais deveríamos [os mais atentos ou estudiosos] olhar para a história da Alemanha no fim da república de Weimar para perceber algumas das linhas condutoras do que se passa. A falta de paciência dos eleitores, o seu catastrofismo, as suas altissimas e desmesuradas expectativas.
9. Espero nos próximos dias algumas análises interessantes sobre este novo "caso à portuguesa". Que se cuidem os políticos.