quinta-feira, 5 de abril de 2007

Um país a três tempos [I]


Um país a três tempos

1. A perplexidade que tomou o país após o conhecimento dos resultados de um recente concurso televisivo lançou uma nuvem negra sobre a capacidade da jovem democracia portuguesa se reconciliar com os portugueses. Apesar disso, ou talvez por isso, constitui uma magnífica oportunidade para uma psicanálise colectiva a como estamos enquanto povo e colectivo de cidadãos.

Estas duas expressões são empregues normalmente como sinónimos, mas em boa verdade referem-se a coisas diferentes. Pode-se ser povo humilhado, derrotado e passivo, ou povo consciente, exigente e ambicioso. O sujeito e o verbo são os mesmos, mas os complementos directos respeitam a coisas absolutamente diversas. Ser-se um colectivo de cidadãos significa sentirmo-nos responsáveis pela nossa sorte, enquanto comunidade política, críticos daqueles a quem confiamos o mandato de nos governar e pedagógicos em relação aos erros de visão [ou de educação] dos nossos concidadãos.

É curioso que as duas personalidades políticas que obtiveram os favores dos espectadores da RTP - Salazar e Cunhal - têm mais em comum do que à primeira vista possa parecer. Ambos retêm alguns dos traços de individualidade portuguesa sobre que importaria reflectir, com alguma profundidade. Entre politólogos e sociólogos poder-se-ia acrescentar algo de substancial, mas pelo que vejo, na imprensa e nas televisões, os nossos distintos intelectuais estão mais entretidos em lamber as feridas ou limpar o seu orgulho ferido do que a tornarem-se verdadeiramente úteis.

Voltando aos traços comuns dos insignes políticos. Desde logo, a assunção de um destino individual, solitário e grandioso, que se lhes impõe como se tratasse de uma missão divina [ou predestinada]. Um destino que se arroga inspirador de sacrifícios exaltantes. Por outro, a ênfase nas diferenças sociais, que destinam uns a mandar e outros a obedecer e exigem uma elite que funciona acima da grei como vanguarda na caminhada do povo para o “paraíso glorificado”. Se nos dermos ao trabalho de associar em pares os slogans mais conhecidos da retórica fascista e comunista percebemos quanto estas ideologias estão ligadas e se assemelham, apesar de serem apresentadas, habitualmente, como antónimos: chefe-secretário-geral; união nacional-partido de vanguarda; povo-massas; personalismo cristão-ideologia da classe operária; evangelização-emancipação do proletariado; adversários da nação-inimigos da classe operária; desígnio nacional-missão histórica. E por aí fora.

De um modo especial, a prosopopeia do sacrifício e do desígnio histórico em alguém invulgar que exerce um poder absoluto, proclamando um estoicismo próprio de deuses é comum ao perfil de Salazar e Cunhal. Ambos exerceram um mando que foi prolongado, liberto de constrangimentos do mandato representativo e destinado a ser cegamente obedecido. Ambos exerceram um poder pessoal que se cimentou no secretismo, no medo, na auto-censura e na eliminação do inconformista.

O que é que isto tem a ver com o Portugal de hoje? Aparentemente pouco ou nada. Então porquê o escândalo?

Porque estando aparentemente datados, Salazar e Cunhal são a f'ábula do político que faz o que apregoa, que se devota à causa pública sem olhar a ganhos pessoais, que governa [ou manda] sem esperar o consentimento dos governados [ou dos correligionários], mas de uma forma determinada, eficaz. Personificam um poder acima da vulgar suspeita de aproveitamento e projectam um élan aglutinador que se funda numa Fé profunda e inquebrantável, numa construção divinizada do dogma, no carácter exclusivista da seita. Por isso ambos tornaram-se, no inconsciente dos portugueses, numa espécie de santos.

E não há nada que os portugueses apreciem mais que os santos. Há-os para todos os gostos: os Pastorinhos de Fátima, a Senhora da Ladeira, a Beata Alexandrina Maria da Costa, o Frei Bartolomeu dos Mártires, a Rainha Santa Isabel, o Beato Nuno Álvares e o Padre Cruz. Porque não canonizar ao vivo na televisão Cunhal ou Salazar? A guerra colonial, a censura, o trabalho africano escravo, a tortura da estátua, os mortos de Nambuangongo, a PIDE-DGS e os calabouços da António Maria Cardoso meros peanuts. A eliminação dos inimigos à liderança nos duros anos de clandestinidade, a cumplicidade com Moscovo e o KGB, o aventureirismo do PREC, cookies.

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